sábado, 17 de fevereiro de 2007

Relato de um caso prático. Hipnós e sua influência na vida académica. Um teorema de carácter militar e mitológico.

Epígrafe

Muitas vezes sentíamos-nos diferentes. Muitas vezes não nos queríamos envolver com os comuns estudantes. Muitas vezes tentávamos distinguir-nos pela nossa imaginação e, quase sempre, tínhamos razão de e, para assim agir.

Pelas mais diversas razões mas, essencialmente, pela qualidade duvidosa do divino néctar de Baco assim como pelas companhias de interesse duvidoso, resolvemos faltar ao tradicional jantar de curso da recepção ao caloiro daquele que foi o nosso 3ºano de académicos bons viventes. No entanto, apesar do núcleo duro dos artistas ter decidido ir jantar num outro restaurante, isso é, bem longe da sôfrega reunião dos restantes camaradas de curso, 2 emissários foram mandados em sacrifício como Participantes/Observadores para que não corrêssemos o risco de não estar a par de algum acontecimento relevante para os nossos pertinentes julgamentos acerca da vida social Vianense. Note-se que apesar dos poucos defeitos que, modestamente, admito que pudéssemos ter tido, a nossa inviolada moral nunca nos permitiria conjecturar sem acertados fundamentos provindos de fontes seguras, filedignas e incorruptíveis.

Assim sendo, foram escolhidos para esta missão de reconhecimento undercover, os 2 elementos que, na nossa perspectiva, melhor se enquadrariam no ambiente em questão. Destacados o TS e Javali, a noite prosseguiu como planeado até certa altura...

Autor: GMDC


Capitulo I

Enfastiado de vinho maduro sobre-aquecido e, ainda sofrendo dos abusos alcoolémicos da noite anterior, decidi não me deslocar para o antro onde se praticava lenocídio de caloiras naquele ano. Os restantes agentes, estes, sempre fieis aos seus postos, incumbiram-me porém de uma ultima incumbência.

Nada me fazia suspeitar, até então, que algo poderia ter corrido mal. Quando não há notícias, estas são sempre boas. No entanto, subindo as difíceis escadas de caracol com uma recruta feminina que, tinha o simples papel de entregar ao mesmo a carteira que o Psico tinha deixado em casa, percebo que o esquadrão nº1 tinha cumprido a sua tarefa bem demais.

Bem demais estão alguns dos leitores neste momento a pensar. O que é que pode ser bem feito demais? Não será isso uma questão do aborrecido e, na minha opinião, supérfluo forro filosófico? Saltando intermínáveis e inúteis horas de discussões inconsequentes, o facto é que TS e Javali tinham levado naquela noite o termo undercover a um nível que antes nunca sequer tinham os mais ambiciosos ousado sonhar.

Lembro me de os ver sair de casa os olhos brilhantes com uma felicidade e orgulho que só os puros, jovens ainda ingénuos, ainda tem coragem de ressentir nos seus âmagos ansiosos por abraçar uma causa qualquer. Sempre alegres por desempenhar uma missão, esta não era, à partida, um obstáculo as suas imaculadas folhas de serviço.

No entanto, lá estava eu com a recruta atrás de mim. Na penumbra hesitante que só os ares abstractos da casa do 3º ano oferecia, tínhamos-nos esgueirado pelas íngremes escadas até ao corredor central. Pressenti imediatamente que algo não estava bem. É estranho que numa sociedade envolta pela tecnologia e pela dessensibilização dos instintos, o ser animal entorpecido dentro de nós ainda consiga, bem que fugazmente, emergir das nossas entranhas despertando-nos o sexto mítico sentido.

Logo que fiquei ofegante e senti a apreensividade da pessoa atrás de mim, senti o velho desgastado soalho de madeira a vibrar. A onda de choque furiosa, cujas sequelas consecutivas aumentavam a intensidade global das oscilações do chão instável, era quase palpável. Ao mesmo tempo que estudávamos, aterrados, este fenómeno, começamos a ouvir uns estrondos roucos e pesados que me recordava uma cena que ficou na história do cinema. Estou me a referir mais especificamente aos impactos dos passos do Tyrannosaurus REX na famosa saga dirigda por Steven Spielberg.

Senti-a a agarrar-se ao meu braço insegura quanto ao que poderia esconder aquele escuro corredor. O nosso stress aumentou quando entrevimos por entres as frinchas da porta de um quarto, uma cansada luz amarelada. Dei um cuidadoso passo atrás como precaução tendo, no entanto, cuidado com o absimo com o qual as escadas nos ameaçava. Foi neste preciso momento que o mistério se revelou.

Javali abriu de rompante a porta do quarto. O seu denso cabelo revolto, invocador de um estilo Holiwoodiano fora de moda desde os anos 80, tal juba de um animal sem glória. As suas vestimentas eram nulas a não ser que, consideremos como tal, as pálidas cuecas brancas tão reservadas na discrição de seu dono como, talvez, reveladoras da sua pouca ou nenhuma utililidade exibicional para com o sexo oposto.

Boquiaberta, a jovem que me acompanhava assistia em primeira mão a este triste espectáculo. A proeminente barriga de TS liderada todo este carrocel vergonhoso. Este pequeno , mas largo, ser humano, passou por nós correndo desenfreadamente numa ânsia descontrolada rumo às casas de banho. Cheguei a temer pela estabilidade do prédio e, só consegui esquecer o penetrante ruído dos seus passos, quando ouvi o gorgolejar espesso do seu vómito caindo nalguma superfície dura destina a outros propósitos.

Envergonhado pela situação, entreguei a carteira e despachei a jovem recruta pelas escadas menorizando sem convicção o que ela tinha acabado de ver. Neste momento apenas estava tentando alcançar Javali antes que este desfalece-se.

Levei o para o quarto, tal túmulo eterno, e consegui arrancar dele um ultimo estertor justificativo. Empenhando-se ao máximo para aderirem ao visco do ambiente de um jantar de curso, os nossos 2 queridos agentes cometeram o pecado mortal dos infiltrados. Ou seja, tornaram-se como os espionados não conseguindo, apesar dos intensos treinos quase diários, integrarem-se naquela imunda forma de vida sem sofrer uma certa atracção.

No entanto, apesar de seriamente debilitadas, Javali ainda consegui usar algumas das suas capacidades para regressar à base. Fazendo jus da faísca que apenas os grandes homens tem, consegui, a muito custo, ultrapassar alguns inimigos dos quais apenas os mais relevantes passarei a citar: Gregório, Equilíbrio, Narcolépsia e um tal de Maisalcool.

Antes da sua consciência cair na escuridão, revelou-me ainda mais uma coisa:

-O Ts.. Ajudem-no..
-TS? Ainda esta lá fora? Insisti zangado comigo mesmo por te-lo esquecido.

Senti-me aliviado. Tinha chegado a pensar que ele pudesse ter-se juntado ao campo oposto.

-Está, nem imaginas como ele está.. Coitado.. Vomitou-se todo.. Ajudem-no..

E calou-se finalmente..

Neste momento senti-me revoltado pelo meu egoísmo. De facto, apesar da gravidade do momento e da preocupação por saber que andava um dos nossos lá fora exposto e vulnerável, senti me incrivelmente feliz. Feliz por ter tido a oportunidade de presenciar uma destas tão raras atitudes onde, o ser humano no seu ultimo folgo, tem por preocupação a salvaguarda de um companheiro. Uma atitude destas é digna das mais altas das condecorações.

Ainda extasiado pela nobreza de sentimento que tinha sentido por parte de Javali, afastei a imunda sensação de reconforto de dentro de mim. Fechei nostálgico a porta do quarto imaginando quando é que alguém voltaria a deixar a luz lá entrar, e prostrei-me na varanda agreste.

Olhando para a cidade que se embebedava de noite, perguntei para mim:

Onde estará TS? O que lhe vai acontecer?

Autor: GMDC


Capítulo II

Depois do bem sucedido projecto para representar a tradição marítima vianense na Expo 98, Pedrosa Quintela rapaz ambicioso, decide lançar as suas redes a outros intentos.

Vivia com o sonho de discotecas, mas a tradição de família imponha-se para fazer vida de pescador. Sempre a fervilhar de ideias nos tempos vagos da faina marítima, Pedrosa Quintela procurou rentabilizar o extinto projecto da Expo, e decide adapta-lo a outras funcionalidades. De tão habituado às ondulações que a faina lhe impusera, Pedrosa Quintela tinha dificuldades em adaptar-se a terra firme. Especialmente, quando dançava em discotecas. Era um autêntico desajeitado.

Esta particularidade falou mais alto na hora de decidir o que fazer com o projecto. Assim decide criar um espaço onde conjugasse todos os factores que lhe preenchiam a vida; mulheres, mar e discoteca. Daí não tive outro caminho, e nasceu o mais alternativo e inovador recinto de diversão do Alto Minho: A Sereia da Gelfa.

Ora, uma festarola académica que se preze não pode passar ao lado da tradição, nem muito menos da novidade.

E assim foi...

Capas ondulantes, gesticulações, risos, comentários e alegrias desprovidas de lucidez acompanhavam a azafama estudantil que empilhava os autocarros com destino à pista prometida. De um modo geral uma ânsia fervil pairava sobre nós estudantes. Para os novatos caloiros a ânsia de conhecer, para nós doutores a ânsia de sermos conhecidos. É o pretérito mais que perfeito da vida académica!

Apesar de nessa semana de recepção ao caloiro estávamos em maré de azar em matérias de condução, policia, álcool e discotecas, decidimos mesmo assim não dar parte de fraco e ir de carro... e para não variar... irmos (quase) todos!

E partimos para o imprevisto... deixando para trás o amontoada de gente zombificada que aguardava o próximo autocarro de serviço. Para a maioria de nós era mais um simples rescaldo das noites anteriores mas, para o nosso TS tudo era novidade. Trabalhador estudante, sentia-se na obrigação de aproveitar ao máximo a folia estudantil, quer por sua vontade quer por vontade do grupo. De maneiras que, mesmo sobre efeito de muito cansaço e álcool, a noite à uma da manhã ainda tinha muito para dar!

A viagem correu bem, apenas uma má disposição devido à pouca arrumação que o automóvel tinha, obrigando o nosso TS a ficar entalado no meio do banco de traz. Entre o sono e caimbras o nosso TS lá ia soltando um «dá-lhe gás» ou o clássico «passa um fininho àquelas febras ali» que tão bem o caracteriza. Chegados ao destino, pasmaram-se-nos os espíritos com toda aquela confusão. Para começar três filas à porta de entrada, um parque de estacionamento a abarrotar de carros, e uma autêntica esquadra de arrumadores por eles atraídos.

Ora isto de atraídos pelos carros não é assunto exclusivo para arrumadores... e eu sei do que que falo! É que o nosso amigo TS também tem atracção por automóveis... em particular por espelhos, tejadilhos e portas! Apesar do seu temperamento tranquilo e nada dado a grandes manifestações é um rapaz que depois de umas boas litrenas tem umas tendências com contornos de obsessão. Devido à sua perna longa e ao seu magnífico modelo de sapatos, a hipótese de subir e saltitar por cima dos carros sem dó nem piedade, proporcionando a quem assiste momentos de rara beleza nunca fica por terra. Aquilo afigura-se como uma nova vertente das tão badaladas Danças Urbanas, em que o nosso ARTISTA conseguiu misturar o sapateado com o balé na perfeição!

«Peeessssooaaaal......»

«temos que controlar o TS porque com tanto carro por perto ou o aguentamos agora ou nunca mais o apanhamos»
Nisto vira-se o TS «Pá vou ali dar uma mija e já venho!»

Agoirados... nem é tarde nem é cedo... fomos todos com a desculpa de cumprir o famoso ditado de que "quando mija um português mijam logo dois ou três" embora a vontade também tivesse o seu contributo. Bom, o certo é que o pior dos cenários tinha sido ultrapassado e caminhava-mos então para o interior da discoteca prometida. A expectativa era muita, pois tratava-se de umas das criações mais esotéricas da região, protagonizado pelo emblemático Pedrosa Quintela.
Além do mais, o simples nome Sereia da Gelfa afigurava-se-nos como que um autêntico Santo Graal de diversão nocturna. "Sereia" era automaticamente associado a "mulheredo" e "Gelfa" soava invariavelmente a marca de cerveja. Isto bastou para nos comandar as vontades e aguçar as expectativas.

Na entrada, ficamos cegos pelos holofotes e não reconhecíamos ninguém.. muito menos adivinhar qual o aspecto da disco pois tudo era sombra e som naquele momento. Totalmente ofuscados, achamos por bem restabelecer energias e assentar um pouco as ideias pelo que encostamos no primeiro balcão que encontramos. Lá fomos bebendo umas "gelfas" enquanto observamos "pseudo sereias" e particularmente o próprio espaço.

O recinto era encantador, cheio de luzes que nos remetiam para um cenário de navegações em pleno alto mar. A pista de dança equipada com um sistema de molas amortecedoras, fazia os dançantes ondular consoante o ritmo da música. Dava a sensação de estarmos sobre o mar. O sistemas foi tão bem projectado que bastava um só individuo a dançar para movimentar a pista, fazendo com que todos se sintonizassem ao mesmo ritmo, mesmo aqueles que não dançavam. Ali toda a gente se mexia não havia hipótese.

Tudo ia normal até uma pouco enfadonho diga-se de passagem, os artistas já davam sinais de cansaço. Até que alguém deu a ideia de ir esticar a pernanga para a pista. Passaram-se umas musiquitas, umas bebidas, umas risadas, a moka começou a abater-se sobre nós e quando demos por ela estávamos um em cada ponta da pista. Fomos levados ao sabor da corrente tal e qual como no mar.
Com algum esforço à mistura, por entre toda a aquela gente lá nos conseguimos juntar e chegamos à conclusão de que tínhamos que dançar para não sermos levados novamente. No entanto, para poupar esforços, decidimos que um só elemento do grupo é que dançava enquanto os restantes serenavam ritmadamente. Ora o membro do grupo mais indicado para o efeito era sem dúvida nenhuma o nosso amigo Javali, que dramaticamente, ficou impedido, sem explicação plausível, de acompanhar o grosso dos artistas até esta surpreendente discoteca..

Desta maneira, com tanto cansaço, bebida e embalanço, aconteceu a mais insólita e improvável situação que eu alguma vez presenciei em toda a minha vida num estabelecimento de diversão nocturna. O nosso amigo TS, que pelos mais diversos motivos, se sentiu tão embalado que adormeceu em plena pista de dança! Exactamente ADORMECEU... e de pé!
Este individuo conseguiu vencer, não direi todas, mas umas quantas leis universais da física moderna. Faltou-lhe foi vencer por completo a lei da gravidade porque a sua cabeça teimava em pender-se vertiginosamente para o chão, e umas tantas vezes para trás e outras que tantas, para os lados. Facto que obrigou o nosso artista a recorrer à técnica da "ombriedade" que como o próprio nome indica tem a ver com ombros e solidariedade (ombr+iedade) que mais não é do que contar com o apoio dos ombros dos outros.

Orgulhosos de tão belo momento acrobático, não mais ousamos desamparar o nosso herói na sua insólita odisseia narcótica.

Meus amigos... o que acabei de contar foi simplesmente um marco histórico da humanidade, um episódio que por motivo de contextualização, só comparado às aventuras de Ulisses.

Naquele reduto tempestuoso, o nosso TS sentiu-se tão preso ao sono como Ulisses ao mastro da caravela aquando da sua travessia pelo mar das sereias. Ao nosso artista não houve canto de sereia que o despertasse, nem mesmo aquela música do "I Will Survive de Gloria Gaynor" o acordou do seu vertical soninho em pleno mar de vibrações.

Autor: Laranjinha

terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

A casa do 3º ano

Por entre as mais etéreas recordações dos anos de esforçado e, comparticipado, ócio, estão os tempos passados na 3ª gurita. Local estranho este, desengonçado, sem jeito e, ao mesmo tempo tão incrivelmente apto para os nossos débeis estados mentais.

Localização estratégica tal qual o covil anterior desta vez, porém, potenciada pela proximidade dos estabelecimentos de diversão nocturna e pela feliz vizinhança. Na verdade, e quanto a isso ponho a minha mão no fogo, o facto de a nossa célebre varanda escarpada da rua da Védoria estar cara a cara com as janelas da ala feminina da residência estudantil da ESTG, nada teve a ver com a nossa decisão de ir assombrar o imóvel em questão e os pobres moradores propínquos.

Devo dizer que a primeira vez que visitei o local que, seria no próximo ano lectivo, o nosso nicho de refugio, fiquei bastante perplexo. Na verdade, para além da invulgar arquitectura interior deste edifício classificado, segundo o excentricamente diabólico senhorio, como edifício de interesse municipal (concordo com esta designação mas só depois de aí termos habitado), vários aspectos estranhos saltaram me à vista com toda a força das evidências levando-me, até, a por em causa a habitabilidade do andar.

Assim, seguem agora alguns aspectos peculiares, quase anedóticos :

1º: A Portinhola

A porta de entrada em madeira bruta cujas tábuas, sem tinta, deixavam entrever o interior e, permitiam livre curso ao agreste sopro marítimo, despojado dos seus veraneantes sonhos pela crueldade do Inverno Alto Minhoto. Na sua totalidade, esta peça de bruta artesanalidade, invocadora de outros tempos (menos preocupados com a estética do que com a função), tinha a virtude de afastar os curiosos pelo simples facto de nem um ladrão do mais baixo calibre estar disposto a arriscar-se ser apanhado numa tão aparentemente miserável moradia.

2º: As Escadas

Interminável caracol de acentuada inclinação substanciadora dos mais perigosos efeitos do álcool. Fortuna, divina providência, os nossos hábitos degradantes, certificado de estupidez de um viver de estudante. Nunca ninguém partiu nenhum osso. Estafados chegavamos ao 3º piso, depois de termos vencido a enorme travessia da caixa de ar gélido que, nos edifícios pós-medievais, era hábito encontrar em vez dos tradicionais patamares de acesso aos outros pisos. Nestas primordiais habitações, não se poupava espaço e, assim, cada andar tinha o seu próprio acesso para a rua e a sua individual escada de acesso até ao conforto do lar.

3º: O estado de conservação

Resumirei ao máximo as sensações que tive quando, pela primeira vez, observei o interior deste monstro. Isso porque custa-me de facto relembrar os suores frios, o nojo e a vergonha. O chão estava coberto de um pó branco o qual, no fundo de mim mesmo, pensei ser um narcótico ao acaso. No entanto, a explicação muito oportuna que nos foi dada, foi que tal inesperada situação era da inteira responsabilidade das inquilinas anteriores que, apesar da oposição do proprietário, tinham infestado o espaço com as pulgas do seu gato. Mais do que isso, a ironia palpável que emanava das paredes, fez me ver que, apesar da convivência proibitiva de um felino com os seus donos, estes também tinham dividido o espaço com uma espécie de roedores difamados há séculos, por serem os portadores do vírus mais mortal da história da humanidade: A peste Negra. Finalmente, o vazio das paredes, o ar gélido (capaz de quebrar os mais duros ossos) que deslizava pela serra e entrava pelas inúmeras frinchas do prédio, o forte odor a tinta e verniz de má qualidade, compuseram o "bouquet" final que levou ao fecho do contrato com a agência imobiliária. O masoquismo crónico da nossa irreverência não podia nunca deixar que tão carismático local, de características raras, se escapasse. Tanto potencial em promiscuidade diária com a nossa criatividade só poderia dar origem a uma linda história de terror.

4º: A Varanda

Sem duvida o ex-libris do lugar em que habitamos neste ano. Ampla, com vista privilegiada sobre o Monte de Santa Luzia , não eram atraídos frequentemente os nossos olhares, para tão nobre monumento. Mesmo sendo ícone de uma região, as nossas vistas poisavam mais facilmente assim como, frequentemente, em zonas mais baixas do horizonte. Na verdade, tínhamos preferência, vá se lá saber porquê, pelas glândulas mamárias das vizinhas da frente e, não raras vezes, pelas suas fascinantes peças de roupa interior que flutuavam furiosamente arrebatas pela ventania da cidade. Este nicho estratégico era usado assiduamente para as mais variadas aplicações de ideias geniais que nos surgiam diariamente. Citando apenas algumas destas situações, sou levado a optar pelo arremesso de objectos contundentes para o pátio da residência, as competições de tiro ao alvo (onde o prémio era atribuído a quem mais lixo conseguía introduzir no quarto da "bocinha de broche" pela janela que tinha ficado aberta), o chuveiro holandês (acertar com baldes de agua nos erasmus que entravam no restaurante chinês), os teste de visão (tentar observar com atenção o interior dos decotes que passavam lá em baixo), as sessões de naturismo, o campeonato do arremesso do estendal e os relaxantes pique niques.

5º As dispensas:

A estranha utilização do espaço por parte do alcoólico inepto que desenhou o projecto desta casa, levou a que, nos mais inesperados locais, se encontrassem dispensas de arrumação totalmente inúteis. Na sala, na cozinha e até nos quartos haviam dispensas as quais, apesar de originalmente supérfluas, foram devidamente afectadas a propósitos bem mais castos. Assim, o quarto da varanda viu a sua função alterada. O que no início era uma normal (na medida do possível) divisão do antro, viu-se transformado num agradável pátio interior. Os espaços de armazenamento, estes, serviram para alojar colchões onde dormiam dois dedicados estudantes. Os agora denominados CUBÍCULOS ou CAIXÕES revelaram-se extremamente profíquos no que toca à conservação do pouco calor gerado pelos nossos corpos durante as geladas noites de Inverno. Para além disso, foram descobertas particularidades mágicas capazes de serem usadas como suporte à teoria da relatividade de Einstein. Isso porque, apesar de parecer inédito, a total ausência de luz e de som no interior destas heteróclitas celas de decomposição, o tempo, de facto, passava a uma velocidade diferente do que no exterior destas mesmas. Inúmeras foram as ocasiões em que de lá se saiu as 16h00 pensando, no entanto, que apenas alguns minutos tinham passado desde que lá entramos para descansar/ressacar.

Gostaria de me alongar infinitamente acerca dos peculiares elementos que, no seu uno, formavam a casa da Vedoria. Porém, tenho a noção que apesar de parecerem inócuas, tantas sugestões, podem levar a que algumas crianças de hoje, estudantes de amanhã e desempregados do futuro, tentem repetir, melhorar mesmo, os nossos feitos pelo que, prudentemente, vou abster-me de outras referências.

Continuo agora este post com mais algumas menções às vivências procedentes da casa do 3ºano.

- O Senhorio:

Ser abomínavel que reunia em si mais defeitos do que até agora se julgara possível. Acho até, que o ideal seria inventar novos adjectivos capazes de o representar fielmente. Ama o dinheiro mais que a si próprio, não respeitava a privacidade alheia e tinha aquela irritante capacidade de falar constantemente sem se dar conta da apatia e do aborrecimento da sua audiência. Passou ao lado de uma grande carreira de docente do IPVC. Tentamos engana-lo não pagando as contas acumuladas ao não abrir deliberadamente as portas aos fiscais da EDP e da companhia das águas. Porém, dotado de uma persistência invulgar, os telefonemas constantes e correspondência inesgotável , fizeram com que nos decidíssemos finalmente a regularizar os pagamentos quase meio ano depois de deixar o imóvel.

- O Telhado:

Esta área foi nos proibida logo no primeiro dia. Porém, como poderia-mos nós resistir ao apelo do desconhecido? Como faríamos para lutar contra a natural invocação da descoberta? Como bons Portugueses que somos, ávidos de desvendar o mistério de tudo o que é ignoto, subimos facilmente ao telhado segundos depois de termos entrado em casa. A vista era esplêndida. Alcançava não só o atlântico como grande parte do centro histórico o que nos consentia controlo sobre as movimentações das manadas vianenses. Apesar de algumas telhas partidas (bem pagas na encantada hora da despedida), não me sinto compungido em nenhum aspecto. Guardo em mim as formosas memórias das tardes de sol passadas ali especado. Sinto ainda o ceder do barro das telhas durante aqueles exóticos festejos dos golos do Futebol Clube do Porto na final da UEFA Cup. Como por morrer uma gaivota não acaba a tempestade, também um amolador mudo não mói calhaus. Assim, finalizo a alusão ao nosso protector telhado com um memorandum à sua função secundária. Esta, era a de armazenar o que de mais inútil encontrávamos na rua. Muito irónico é o mundo. Um andar com tanta dispensa, e ter necessidade de por a vida dos transeuntes em perigo, por os sinais de transito estarem a vacilar alegremente na berma do precipício.


- O frio:

Grande parte do desconforto causado em nós pela aquela mansão imaginária deveu-se ao ignóbil frio que se fez sentir naquele inverno. Consequentemente, as largas centenas de ouros (Private Joke) acumulados em facturas atrasadas, tinham forte relação com os aquecedores eléctricos que cada um tinha no seu quarto. Como o ar cálido produzido por estas máquinas (que não reconheciam nenhuma convenção ecológica) era substancialmente inferior àquele que, glacial, entrava pelas auto-estradas a que chamávamos janelas, tínhamos de reforçar as nossas defesas nocturnas com a seguinte indumentária:

- Um mínimo de 12 tagus do Lunas,
- Um pré-aquecimento do quarto de15 minutos através de um velho aquecedor a óleo ou eléctrico em regime maximizado,
- Um saco de água quente enfiado nos lençois,
- 1 lençol de flanela,
- 2 Cobertores de inverno,
- 1 Colcha de penas.

A roupa que levávamos em nós para o entorpecido sono era geralmente:

- Cuecas/meias/T-Shirt,
- Calças de fato de treino,
- Camisola,
- Casaco de penas,
- Gorro,
- Echarpe para nao acordar com o nariz azul.

Apesar de todas as contrariedades do edifício, admito que foi um ano bem passado. Com um mentiroso compulsivo a viver em frente, um restaurante sul americano mesmo ali, um centro de internet mal frequentado acolá e os belos exemplares femininos que trabalhavam no centro de estética ao fundo da rua, a vida tornou-se mais fácil. Confesso ter até saudades de insultar diariamente a velha mal criada da porta em frente e de evitar tomar banho durante semanas a fio para não arriscar uma pneumonia.

Invoco em mim dores de cabeça que não tem fim, bebedeiras em frente ao jardim antes de ir para a cama, a seca que apanhava se não me embebedasse , época onde ainda estava numa fase, em que ressacava sete dias por semana!