sábado, 17 de fevereiro de 2007

Relato de um caso prático. Hipnós e sua influência na vida académica. Um teorema de carácter militar e mitológico.

Epígrafe

Muitas vezes sentíamos-nos diferentes. Muitas vezes não nos queríamos envolver com os comuns estudantes. Muitas vezes tentávamos distinguir-nos pela nossa imaginação e, quase sempre, tínhamos razão de e, para assim agir.

Pelas mais diversas razões mas, essencialmente, pela qualidade duvidosa do divino néctar de Baco assim como pelas companhias de interesse duvidoso, resolvemos faltar ao tradicional jantar de curso da recepção ao caloiro daquele que foi o nosso 3ºano de académicos bons viventes. No entanto, apesar do núcleo duro dos artistas ter decidido ir jantar num outro restaurante, isso é, bem longe da sôfrega reunião dos restantes camaradas de curso, 2 emissários foram mandados em sacrifício como Participantes/Observadores para que não corrêssemos o risco de não estar a par de algum acontecimento relevante para os nossos pertinentes julgamentos acerca da vida social Vianense. Note-se que apesar dos poucos defeitos que, modestamente, admito que pudéssemos ter tido, a nossa inviolada moral nunca nos permitiria conjecturar sem acertados fundamentos provindos de fontes seguras, filedignas e incorruptíveis.

Assim sendo, foram escolhidos para esta missão de reconhecimento undercover, os 2 elementos que, na nossa perspectiva, melhor se enquadrariam no ambiente em questão. Destacados o TS e Javali, a noite prosseguiu como planeado até certa altura...

Autor: GMDC


Capitulo I

Enfastiado de vinho maduro sobre-aquecido e, ainda sofrendo dos abusos alcoolémicos da noite anterior, decidi não me deslocar para o antro onde se praticava lenocídio de caloiras naquele ano. Os restantes agentes, estes, sempre fieis aos seus postos, incumbiram-me porém de uma ultima incumbência.

Nada me fazia suspeitar, até então, que algo poderia ter corrido mal. Quando não há notícias, estas são sempre boas. No entanto, subindo as difíceis escadas de caracol com uma recruta feminina que, tinha o simples papel de entregar ao mesmo a carteira que o Psico tinha deixado em casa, percebo que o esquadrão nº1 tinha cumprido a sua tarefa bem demais.

Bem demais estão alguns dos leitores neste momento a pensar. O que é que pode ser bem feito demais? Não será isso uma questão do aborrecido e, na minha opinião, supérfluo forro filosófico? Saltando intermínáveis e inúteis horas de discussões inconsequentes, o facto é que TS e Javali tinham levado naquela noite o termo undercover a um nível que antes nunca sequer tinham os mais ambiciosos ousado sonhar.

Lembro me de os ver sair de casa os olhos brilhantes com uma felicidade e orgulho que só os puros, jovens ainda ingénuos, ainda tem coragem de ressentir nos seus âmagos ansiosos por abraçar uma causa qualquer. Sempre alegres por desempenhar uma missão, esta não era, à partida, um obstáculo as suas imaculadas folhas de serviço.

No entanto, lá estava eu com a recruta atrás de mim. Na penumbra hesitante que só os ares abstractos da casa do 3º ano oferecia, tínhamos-nos esgueirado pelas íngremes escadas até ao corredor central. Pressenti imediatamente que algo não estava bem. É estranho que numa sociedade envolta pela tecnologia e pela dessensibilização dos instintos, o ser animal entorpecido dentro de nós ainda consiga, bem que fugazmente, emergir das nossas entranhas despertando-nos o sexto mítico sentido.

Logo que fiquei ofegante e senti a apreensividade da pessoa atrás de mim, senti o velho desgastado soalho de madeira a vibrar. A onda de choque furiosa, cujas sequelas consecutivas aumentavam a intensidade global das oscilações do chão instável, era quase palpável. Ao mesmo tempo que estudávamos, aterrados, este fenómeno, começamos a ouvir uns estrondos roucos e pesados que me recordava uma cena que ficou na história do cinema. Estou me a referir mais especificamente aos impactos dos passos do Tyrannosaurus REX na famosa saga dirigda por Steven Spielberg.

Senti-a a agarrar-se ao meu braço insegura quanto ao que poderia esconder aquele escuro corredor. O nosso stress aumentou quando entrevimos por entres as frinchas da porta de um quarto, uma cansada luz amarelada. Dei um cuidadoso passo atrás como precaução tendo, no entanto, cuidado com o absimo com o qual as escadas nos ameaçava. Foi neste preciso momento que o mistério se revelou.

Javali abriu de rompante a porta do quarto. O seu denso cabelo revolto, invocador de um estilo Holiwoodiano fora de moda desde os anos 80, tal juba de um animal sem glória. As suas vestimentas eram nulas a não ser que, consideremos como tal, as pálidas cuecas brancas tão reservadas na discrição de seu dono como, talvez, reveladoras da sua pouca ou nenhuma utililidade exibicional para com o sexo oposto.

Boquiaberta, a jovem que me acompanhava assistia em primeira mão a este triste espectáculo. A proeminente barriga de TS liderada todo este carrocel vergonhoso. Este pequeno , mas largo, ser humano, passou por nós correndo desenfreadamente numa ânsia descontrolada rumo às casas de banho. Cheguei a temer pela estabilidade do prédio e, só consegui esquecer o penetrante ruído dos seus passos, quando ouvi o gorgolejar espesso do seu vómito caindo nalguma superfície dura destina a outros propósitos.

Envergonhado pela situação, entreguei a carteira e despachei a jovem recruta pelas escadas menorizando sem convicção o que ela tinha acabado de ver. Neste momento apenas estava tentando alcançar Javali antes que este desfalece-se.

Levei o para o quarto, tal túmulo eterno, e consegui arrancar dele um ultimo estertor justificativo. Empenhando-se ao máximo para aderirem ao visco do ambiente de um jantar de curso, os nossos 2 queridos agentes cometeram o pecado mortal dos infiltrados. Ou seja, tornaram-se como os espionados não conseguindo, apesar dos intensos treinos quase diários, integrarem-se naquela imunda forma de vida sem sofrer uma certa atracção.

No entanto, apesar de seriamente debilitadas, Javali ainda consegui usar algumas das suas capacidades para regressar à base. Fazendo jus da faísca que apenas os grandes homens tem, consegui, a muito custo, ultrapassar alguns inimigos dos quais apenas os mais relevantes passarei a citar: Gregório, Equilíbrio, Narcolépsia e um tal de Maisalcool.

Antes da sua consciência cair na escuridão, revelou-me ainda mais uma coisa:

-O Ts.. Ajudem-no..
-TS? Ainda esta lá fora? Insisti zangado comigo mesmo por te-lo esquecido.

Senti-me aliviado. Tinha chegado a pensar que ele pudesse ter-se juntado ao campo oposto.

-Está, nem imaginas como ele está.. Coitado.. Vomitou-se todo.. Ajudem-no..

E calou-se finalmente..

Neste momento senti-me revoltado pelo meu egoísmo. De facto, apesar da gravidade do momento e da preocupação por saber que andava um dos nossos lá fora exposto e vulnerável, senti me incrivelmente feliz. Feliz por ter tido a oportunidade de presenciar uma destas tão raras atitudes onde, o ser humano no seu ultimo folgo, tem por preocupação a salvaguarda de um companheiro. Uma atitude destas é digna das mais altas das condecorações.

Ainda extasiado pela nobreza de sentimento que tinha sentido por parte de Javali, afastei a imunda sensação de reconforto de dentro de mim. Fechei nostálgico a porta do quarto imaginando quando é que alguém voltaria a deixar a luz lá entrar, e prostrei-me na varanda agreste.

Olhando para a cidade que se embebedava de noite, perguntei para mim:

Onde estará TS? O que lhe vai acontecer?

Autor: GMDC


Capítulo II

Depois do bem sucedido projecto para representar a tradição marítima vianense na Expo 98, Pedrosa Quintela rapaz ambicioso, decide lançar as suas redes a outros intentos.

Vivia com o sonho de discotecas, mas a tradição de família imponha-se para fazer vida de pescador. Sempre a fervilhar de ideias nos tempos vagos da faina marítima, Pedrosa Quintela procurou rentabilizar o extinto projecto da Expo, e decide adapta-lo a outras funcionalidades. De tão habituado às ondulações que a faina lhe impusera, Pedrosa Quintela tinha dificuldades em adaptar-se a terra firme. Especialmente, quando dançava em discotecas. Era um autêntico desajeitado.

Esta particularidade falou mais alto na hora de decidir o que fazer com o projecto. Assim decide criar um espaço onde conjugasse todos os factores que lhe preenchiam a vida; mulheres, mar e discoteca. Daí não tive outro caminho, e nasceu o mais alternativo e inovador recinto de diversão do Alto Minho: A Sereia da Gelfa.

Ora, uma festarola académica que se preze não pode passar ao lado da tradição, nem muito menos da novidade.

E assim foi...

Capas ondulantes, gesticulações, risos, comentários e alegrias desprovidas de lucidez acompanhavam a azafama estudantil que empilhava os autocarros com destino à pista prometida. De um modo geral uma ânsia fervil pairava sobre nós estudantes. Para os novatos caloiros a ânsia de conhecer, para nós doutores a ânsia de sermos conhecidos. É o pretérito mais que perfeito da vida académica!

Apesar de nessa semana de recepção ao caloiro estávamos em maré de azar em matérias de condução, policia, álcool e discotecas, decidimos mesmo assim não dar parte de fraco e ir de carro... e para não variar... irmos (quase) todos!

E partimos para o imprevisto... deixando para trás o amontoada de gente zombificada que aguardava o próximo autocarro de serviço. Para a maioria de nós era mais um simples rescaldo das noites anteriores mas, para o nosso TS tudo era novidade. Trabalhador estudante, sentia-se na obrigação de aproveitar ao máximo a folia estudantil, quer por sua vontade quer por vontade do grupo. De maneiras que, mesmo sobre efeito de muito cansaço e álcool, a noite à uma da manhã ainda tinha muito para dar!

A viagem correu bem, apenas uma má disposição devido à pouca arrumação que o automóvel tinha, obrigando o nosso TS a ficar entalado no meio do banco de traz. Entre o sono e caimbras o nosso TS lá ia soltando um «dá-lhe gás» ou o clássico «passa um fininho àquelas febras ali» que tão bem o caracteriza. Chegados ao destino, pasmaram-se-nos os espíritos com toda aquela confusão. Para começar três filas à porta de entrada, um parque de estacionamento a abarrotar de carros, e uma autêntica esquadra de arrumadores por eles atraídos.

Ora isto de atraídos pelos carros não é assunto exclusivo para arrumadores... e eu sei do que que falo! É que o nosso amigo TS também tem atracção por automóveis... em particular por espelhos, tejadilhos e portas! Apesar do seu temperamento tranquilo e nada dado a grandes manifestações é um rapaz que depois de umas boas litrenas tem umas tendências com contornos de obsessão. Devido à sua perna longa e ao seu magnífico modelo de sapatos, a hipótese de subir e saltitar por cima dos carros sem dó nem piedade, proporcionando a quem assiste momentos de rara beleza nunca fica por terra. Aquilo afigura-se como uma nova vertente das tão badaladas Danças Urbanas, em que o nosso ARTISTA conseguiu misturar o sapateado com o balé na perfeição!

«Peeessssooaaaal......»

«temos que controlar o TS porque com tanto carro por perto ou o aguentamos agora ou nunca mais o apanhamos»
Nisto vira-se o TS «Pá vou ali dar uma mija e já venho!»

Agoirados... nem é tarde nem é cedo... fomos todos com a desculpa de cumprir o famoso ditado de que "quando mija um português mijam logo dois ou três" embora a vontade também tivesse o seu contributo. Bom, o certo é que o pior dos cenários tinha sido ultrapassado e caminhava-mos então para o interior da discoteca prometida. A expectativa era muita, pois tratava-se de umas das criações mais esotéricas da região, protagonizado pelo emblemático Pedrosa Quintela.
Além do mais, o simples nome Sereia da Gelfa afigurava-se-nos como que um autêntico Santo Graal de diversão nocturna. "Sereia" era automaticamente associado a "mulheredo" e "Gelfa" soava invariavelmente a marca de cerveja. Isto bastou para nos comandar as vontades e aguçar as expectativas.

Na entrada, ficamos cegos pelos holofotes e não reconhecíamos ninguém.. muito menos adivinhar qual o aspecto da disco pois tudo era sombra e som naquele momento. Totalmente ofuscados, achamos por bem restabelecer energias e assentar um pouco as ideias pelo que encostamos no primeiro balcão que encontramos. Lá fomos bebendo umas "gelfas" enquanto observamos "pseudo sereias" e particularmente o próprio espaço.

O recinto era encantador, cheio de luzes que nos remetiam para um cenário de navegações em pleno alto mar. A pista de dança equipada com um sistema de molas amortecedoras, fazia os dançantes ondular consoante o ritmo da música. Dava a sensação de estarmos sobre o mar. O sistemas foi tão bem projectado que bastava um só individuo a dançar para movimentar a pista, fazendo com que todos se sintonizassem ao mesmo ritmo, mesmo aqueles que não dançavam. Ali toda a gente se mexia não havia hipótese.

Tudo ia normal até uma pouco enfadonho diga-se de passagem, os artistas já davam sinais de cansaço. Até que alguém deu a ideia de ir esticar a pernanga para a pista. Passaram-se umas musiquitas, umas bebidas, umas risadas, a moka começou a abater-se sobre nós e quando demos por ela estávamos um em cada ponta da pista. Fomos levados ao sabor da corrente tal e qual como no mar.
Com algum esforço à mistura, por entre toda a aquela gente lá nos conseguimos juntar e chegamos à conclusão de que tínhamos que dançar para não sermos levados novamente. No entanto, para poupar esforços, decidimos que um só elemento do grupo é que dançava enquanto os restantes serenavam ritmadamente. Ora o membro do grupo mais indicado para o efeito era sem dúvida nenhuma o nosso amigo Javali, que dramaticamente, ficou impedido, sem explicação plausível, de acompanhar o grosso dos artistas até esta surpreendente discoteca..

Desta maneira, com tanto cansaço, bebida e embalanço, aconteceu a mais insólita e improvável situação que eu alguma vez presenciei em toda a minha vida num estabelecimento de diversão nocturna. O nosso amigo TS, que pelos mais diversos motivos, se sentiu tão embalado que adormeceu em plena pista de dança! Exactamente ADORMECEU... e de pé!
Este individuo conseguiu vencer, não direi todas, mas umas quantas leis universais da física moderna. Faltou-lhe foi vencer por completo a lei da gravidade porque a sua cabeça teimava em pender-se vertiginosamente para o chão, e umas tantas vezes para trás e outras que tantas, para os lados. Facto que obrigou o nosso artista a recorrer à técnica da "ombriedade" que como o próprio nome indica tem a ver com ombros e solidariedade (ombr+iedade) que mais não é do que contar com o apoio dos ombros dos outros.

Orgulhosos de tão belo momento acrobático, não mais ousamos desamparar o nosso herói na sua insólita odisseia narcótica.

Meus amigos... o que acabei de contar foi simplesmente um marco histórico da humanidade, um episódio que por motivo de contextualização, só comparado às aventuras de Ulisses.

Naquele reduto tempestuoso, o nosso TS sentiu-se tão preso ao sono como Ulisses ao mastro da caravela aquando da sua travessia pelo mar das sereias. Ao nosso artista não houve canto de sereia que o despertasse, nem mesmo aquela música do "I Will Survive de Gloria Gaynor" o acordou do seu vertical soninho em pleno mar de vibrações.

Autor: Laranjinha

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