terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

A casa do 3º ano

Por entre as mais etéreas recordações dos anos de esforçado e, comparticipado, ócio, estão os tempos passados na 3ª gurita. Local estranho este, desengonçado, sem jeito e, ao mesmo tempo tão incrivelmente apto para os nossos débeis estados mentais.

Localização estratégica tal qual o covil anterior desta vez, porém, potenciada pela proximidade dos estabelecimentos de diversão nocturna e pela feliz vizinhança. Na verdade, e quanto a isso ponho a minha mão no fogo, o facto de a nossa célebre varanda escarpada da rua da Védoria estar cara a cara com as janelas da ala feminina da residência estudantil da ESTG, nada teve a ver com a nossa decisão de ir assombrar o imóvel em questão e os pobres moradores propínquos.

Devo dizer que a primeira vez que visitei o local que, seria no próximo ano lectivo, o nosso nicho de refugio, fiquei bastante perplexo. Na verdade, para além da invulgar arquitectura interior deste edifício classificado, segundo o excentricamente diabólico senhorio, como edifício de interesse municipal (concordo com esta designação mas só depois de aí termos habitado), vários aspectos estranhos saltaram me à vista com toda a força das evidências levando-me, até, a por em causa a habitabilidade do andar.

Assim, seguem agora alguns aspectos peculiares, quase anedóticos :

1º: A Portinhola

A porta de entrada em madeira bruta cujas tábuas, sem tinta, deixavam entrever o interior e, permitiam livre curso ao agreste sopro marítimo, despojado dos seus veraneantes sonhos pela crueldade do Inverno Alto Minhoto. Na sua totalidade, esta peça de bruta artesanalidade, invocadora de outros tempos (menos preocupados com a estética do que com a função), tinha a virtude de afastar os curiosos pelo simples facto de nem um ladrão do mais baixo calibre estar disposto a arriscar-se ser apanhado numa tão aparentemente miserável moradia.

2º: As Escadas

Interminável caracol de acentuada inclinação substanciadora dos mais perigosos efeitos do álcool. Fortuna, divina providência, os nossos hábitos degradantes, certificado de estupidez de um viver de estudante. Nunca ninguém partiu nenhum osso. Estafados chegavamos ao 3º piso, depois de termos vencido a enorme travessia da caixa de ar gélido que, nos edifícios pós-medievais, era hábito encontrar em vez dos tradicionais patamares de acesso aos outros pisos. Nestas primordiais habitações, não se poupava espaço e, assim, cada andar tinha o seu próprio acesso para a rua e a sua individual escada de acesso até ao conforto do lar.

3º: O estado de conservação

Resumirei ao máximo as sensações que tive quando, pela primeira vez, observei o interior deste monstro. Isso porque custa-me de facto relembrar os suores frios, o nojo e a vergonha. O chão estava coberto de um pó branco o qual, no fundo de mim mesmo, pensei ser um narcótico ao acaso. No entanto, a explicação muito oportuna que nos foi dada, foi que tal inesperada situação era da inteira responsabilidade das inquilinas anteriores que, apesar da oposição do proprietário, tinham infestado o espaço com as pulgas do seu gato. Mais do que isso, a ironia palpável que emanava das paredes, fez me ver que, apesar da convivência proibitiva de um felino com os seus donos, estes também tinham dividido o espaço com uma espécie de roedores difamados há séculos, por serem os portadores do vírus mais mortal da história da humanidade: A peste Negra. Finalmente, o vazio das paredes, o ar gélido (capaz de quebrar os mais duros ossos) que deslizava pela serra e entrava pelas inúmeras frinchas do prédio, o forte odor a tinta e verniz de má qualidade, compuseram o "bouquet" final que levou ao fecho do contrato com a agência imobiliária. O masoquismo crónico da nossa irreverência não podia nunca deixar que tão carismático local, de características raras, se escapasse. Tanto potencial em promiscuidade diária com a nossa criatividade só poderia dar origem a uma linda história de terror.

4º: A Varanda

Sem duvida o ex-libris do lugar em que habitamos neste ano. Ampla, com vista privilegiada sobre o Monte de Santa Luzia , não eram atraídos frequentemente os nossos olhares, para tão nobre monumento. Mesmo sendo ícone de uma região, as nossas vistas poisavam mais facilmente assim como, frequentemente, em zonas mais baixas do horizonte. Na verdade, tínhamos preferência, vá se lá saber porquê, pelas glândulas mamárias das vizinhas da frente e, não raras vezes, pelas suas fascinantes peças de roupa interior que flutuavam furiosamente arrebatas pela ventania da cidade. Este nicho estratégico era usado assiduamente para as mais variadas aplicações de ideias geniais que nos surgiam diariamente. Citando apenas algumas destas situações, sou levado a optar pelo arremesso de objectos contundentes para o pátio da residência, as competições de tiro ao alvo (onde o prémio era atribuído a quem mais lixo conseguía introduzir no quarto da "bocinha de broche" pela janela que tinha ficado aberta), o chuveiro holandês (acertar com baldes de agua nos erasmus que entravam no restaurante chinês), os teste de visão (tentar observar com atenção o interior dos decotes que passavam lá em baixo), as sessões de naturismo, o campeonato do arremesso do estendal e os relaxantes pique niques.

5º As dispensas:

A estranha utilização do espaço por parte do alcoólico inepto que desenhou o projecto desta casa, levou a que, nos mais inesperados locais, se encontrassem dispensas de arrumação totalmente inúteis. Na sala, na cozinha e até nos quartos haviam dispensas as quais, apesar de originalmente supérfluas, foram devidamente afectadas a propósitos bem mais castos. Assim, o quarto da varanda viu a sua função alterada. O que no início era uma normal (na medida do possível) divisão do antro, viu-se transformado num agradável pátio interior. Os espaços de armazenamento, estes, serviram para alojar colchões onde dormiam dois dedicados estudantes. Os agora denominados CUBÍCULOS ou CAIXÕES revelaram-se extremamente profíquos no que toca à conservação do pouco calor gerado pelos nossos corpos durante as geladas noites de Inverno. Para além disso, foram descobertas particularidades mágicas capazes de serem usadas como suporte à teoria da relatividade de Einstein. Isso porque, apesar de parecer inédito, a total ausência de luz e de som no interior destas heteróclitas celas de decomposição, o tempo, de facto, passava a uma velocidade diferente do que no exterior destas mesmas. Inúmeras foram as ocasiões em que de lá se saiu as 16h00 pensando, no entanto, que apenas alguns minutos tinham passado desde que lá entramos para descansar/ressacar.

Gostaria de me alongar infinitamente acerca dos peculiares elementos que, no seu uno, formavam a casa da Vedoria. Porém, tenho a noção que apesar de parecerem inócuas, tantas sugestões, podem levar a que algumas crianças de hoje, estudantes de amanhã e desempregados do futuro, tentem repetir, melhorar mesmo, os nossos feitos pelo que, prudentemente, vou abster-me de outras referências.

Continuo agora este post com mais algumas menções às vivências procedentes da casa do 3ºano.

- O Senhorio:

Ser abomínavel que reunia em si mais defeitos do que até agora se julgara possível. Acho até, que o ideal seria inventar novos adjectivos capazes de o representar fielmente. Ama o dinheiro mais que a si próprio, não respeitava a privacidade alheia e tinha aquela irritante capacidade de falar constantemente sem se dar conta da apatia e do aborrecimento da sua audiência. Passou ao lado de uma grande carreira de docente do IPVC. Tentamos engana-lo não pagando as contas acumuladas ao não abrir deliberadamente as portas aos fiscais da EDP e da companhia das águas. Porém, dotado de uma persistência invulgar, os telefonemas constantes e correspondência inesgotável , fizeram com que nos decidíssemos finalmente a regularizar os pagamentos quase meio ano depois de deixar o imóvel.

- O Telhado:

Esta área foi nos proibida logo no primeiro dia. Porém, como poderia-mos nós resistir ao apelo do desconhecido? Como faríamos para lutar contra a natural invocação da descoberta? Como bons Portugueses que somos, ávidos de desvendar o mistério de tudo o que é ignoto, subimos facilmente ao telhado segundos depois de termos entrado em casa. A vista era esplêndida. Alcançava não só o atlântico como grande parte do centro histórico o que nos consentia controlo sobre as movimentações das manadas vianenses. Apesar de algumas telhas partidas (bem pagas na encantada hora da despedida), não me sinto compungido em nenhum aspecto. Guardo em mim as formosas memórias das tardes de sol passadas ali especado. Sinto ainda o ceder do barro das telhas durante aqueles exóticos festejos dos golos do Futebol Clube do Porto na final da UEFA Cup. Como por morrer uma gaivota não acaba a tempestade, também um amolador mudo não mói calhaus. Assim, finalizo a alusão ao nosso protector telhado com um memorandum à sua função secundária. Esta, era a de armazenar o que de mais inútil encontrávamos na rua. Muito irónico é o mundo. Um andar com tanta dispensa, e ter necessidade de por a vida dos transeuntes em perigo, por os sinais de transito estarem a vacilar alegremente na berma do precipício.


- O frio:

Grande parte do desconforto causado em nós pela aquela mansão imaginária deveu-se ao ignóbil frio que se fez sentir naquele inverno. Consequentemente, as largas centenas de ouros (Private Joke) acumulados em facturas atrasadas, tinham forte relação com os aquecedores eléctricos que cada um tinha no seu quarto. Como o ar cálido produzido por estas máquinas (que não reconheciam nenhuma convenção ecológica) era substancialmente inferior àquele que, glacial, entrava pelas auto-estradas a que chamávamos janelas, tínhamos de reforçar as nossas defesas nocturnas com a seguinte indumentária:

- Um mínimo de 12 tagus do Lunas,
- Um pré-aquecimento do quarto de15 minutos através de um velho aquecedor a óleo ou eléctrico em regime maximizado,
- Um saco de água quente enfiado nos lençois,
- 1 lençol de flanela,
- 2 Cobertores de inverno,
- 1 Colcha de penas.

A roupa que levávamos em nós para o entorpecido sono era geralmente:

- Cuecas/meias/T-Shirt,
- Calças de fato de treino,
- Camisola,
- Casaco de penas,
- Gorro,
- Echarpe para nao acordar com o nariz azul.

Apesar de todas as contrariedades do edifício, admito que foi um ano bem passado. Com um mentiroso compulsivo a viver em frente, um restaurante sul americano mesmo ali, um centro de internet mal frequentado acolá e os belos exemplares femininos que trabalhavam no centro de estética ao fundo da rua, a vida tornou-se mais fácil. Confesso ter até saudades de insultar diariamente a velha mal criada da porta em frente e de evitar tomar banho durante semanas a fio para não arriscar uma pneumonia.

Invoco em mim dores de cabeça que não tem fim, bebedeiras em frente ao jardim antes de ir para a cama, a seca que apanhava se não me embebedasse , época onde ainda estava numa fase, em que ressacava sete dias por semana!

Sem comentários: